Imagine que tenho uma mala muito pesada com um milhão
de moedas de ouro. As alças ficam penduradas no meu pescoço, me
forçando a cabeça pra baixo, retesando os músculos do olhar pra frente.
Vez
ou outra, uma pessoa da rua passa e tenta me roubar. Mas, por mais que
esteja tão pesado e doendo e estragando a minha coluna, luto até a
morte pra proteger a tal da mala. Automaticamente me atiro contra o
chão, como se protegesse um filho das balas. São terríveis esses quilos
centralizados no ponto mais fraco do meu corpo, mas pra violência a
gente não entrega nem os fardos.
Dai,
também, às vezes, uma pessoa da rua se oferece pra carregar a mala pra
mim. Ou pra guardar em sua casa. Ou pra dividir o peso ao estilo “uma
mão em cada alça”. Também não consigo entregar meu arqueamento e
tamanho para essas pessoas. O amor gentil nunca me conquistou.
Gentileza é coisa pra quem nunca será íntimo. Solidariedade é coisa pra
campanha política. Felicidade é pra quem se conforma em ficar num lugar
só porque está bom.
Mas
muito de vez em quando, como aconteceu com a gente, aparece uma pessoa
que não me pede nada e pra quem eu tenho vontade de entregar cada moeda
da minha mala com um milhão de moedas de ouro. Tome, leve, gaste, use,
encha a sua banheira com elas e depois me mande uma foto.
Eu
sou uma mendiga ao contrario. Eu ando pelo mundo implorando pra que
alguém aceite a minha riqueza. Fico sentada no chão, tocando meu
instrumento, com um chapéu imenso e lotado. E a plaquinha “por favor,
não me ajude”. Muitas pessoas passam, mas pra poucas me levanto.
Posso
ficar horas tentando te explicar. Você tem um resto perdido e solitário
de sobrancelha ao lado da sobrancelha esquerda. Você tem pequenos
buracos entre os dentes de baixo. Você molha o lábio com a língua ainda
mais seca que seus lábios, quando está nervoso. Você joga seu maxilar
inferior pra frente quando a risada é de deboche. Você joga o seu
maxilar superior pra frente quando a risada é de timidez.
Você
atravessou a rua com as mãos congeladas dentro do bolso. Você pede
perdão pela sua parte playboy com a doçura e a sinceridade de um poeta
descalço. Você me convida pra almoçar no restaurante onde terminamos e,
porque sabe ser piadista exatamente do jeito que combina comigo,
explica detalhadamente onde é o lugar como se eu não lembrasse dele
todos os dias.
Eu
vejo a palavra “reply” no meu celular e, só porque tem a letra “y”, a
letra mais forte do seu sobrenome, sinto de leve um chutinho atrás dos
meus joelhos. Eu poderia ficar horas te explicando por que eu acho que
é amor. Você
outro dia fez o exercício contrário. Ficou tentando me explicar por que
não é amor. Falou da minha amargura verborrágica, das minhas fases com
remédios que causam anorgasmia, do quanto odiava quando eu tentava
extrair mais e mais e mais do seu peito protegido pelas várias
jaquetinhas modernas que parecem paletozinhos mas têm zíper e, por fim,
disse que apesar de não simpatizar com elas, prefere as meninas que te
fazem sentir de férias em um spa relaxante.
Não
são por essas coisas que não se ama. Não são por essas coisas que se
ama. Essas são apenas as coisas sobre as quais conseguimos falar na
nossa ânsia de ocupar a cabeça enquanto nos encaramos um pouco
assustados. A
verdade é que, no meio da multidão, estamos carregando nossas malas
pesadas de riquezas e belezas e sentimentos. E uma hora, só porque
acontece e não se pode explicar sem parecer ingênuo e arrogante,
escolhemos uma pessoa que nos leve.Eu sei que é amor porque eu te escolhi pra me levar e, mesmo você não tendo aceitado, eu fui. Eu
te vi atravessando a rua com as mãos frias dentro da “jaquetinha paletó
que tem zíper” e fui lançada sem tempo de pena. Você não sabe, você não
vê, você não quer, você não se importa. Mas, no último segundo do sinal
fechado, eu abri a janela do meu carro e joguei a mala com milhões de
moedas de ouro.
A
mala não te atingiu, caiu meio metro antes do seu último passo. Nem o
som do meu peito desmoronado, nem o cheiro do meu amor metalizado, nem
a luz da minha devoção dourada. A mala espatifou no meio da avenida
caótica pela chuva e pela véspera do feriado. Os famintos, os
entediados, os pobre-ninguéns, os todos-os-outros, se engalfinharam pra
tirar proveito do amor que, lançado ao homem sem mãos aparentes, agora
ficou esparramado, exposto e restante no asfalto, como um resto de
feira reluzente. (Tati Bernardi)